Bairro dormitório<br> e boa vida de cão

Zillah Branco

Vivo na «cordilheira» de Massamá, ao meio de uma das inúmeras ladeiras íngremes. Com bastante idade já é difícil sair de casa pensando na obrigatória ladeira que terei de enfrentar na ida ou na volta. Há uma linha de transporte interno que serve alguns pontos, de meia em meia hora com autocarros enormes e vazios. Mas é caro para quem precisa economizar.

Tentei conversar com a Junta de Freguesia de Massamá (que agora foi agregada à de Monte Abraão, onde estão localizadas as instituições do Estado, mas para a qual não há transporte rodoviário público) apenas para sugerir veículos menores e mais frequentes, talvez com trajetos diferentes para servir maior número de utentes. Recomendaram-me procurar o Serviço de Transportes da Câmara de Sintra porque a JF nada poderia fazer.

Entrei em contacto com o Serviço Municipal por Internet como indica o «site» (para não confundir com o assustador «citius» nacional) da autarquia. Recebi uma resposta surrealista: «Só tratamos de transporte ligado ao turismo. Consulte a empresa (privada) VIMECA». Mandei uma nota para o Jornal de Sintra, (que não saiu) sugerindo que a população residente é muito maior do que a turística e as autarquias são eleitas para servi-la.

Sem solução, passei a utilizar o demorado autocarro que, mesmo com preço mais baixo do que os de Lisboa, sai caro para quem recebe pensão de subsistência. Poupo o esforço sobre as coronárias e exercito a paciência.

Observo os vizinhos que por ali circulam sempre com pressa e desconhecendo a antiquada fórmula da fraternidade que antes caracterizava a nação. Raros respondem ao cumprimento de simpatia, quando não houve a britânica apresentação formal. Mesmo os apresentados, nunca oferecem uma boleia a quem seca no ponto rodoviário. Vá-se lá saber se isto ofende ou abre portas à maior intimidade. Medos sociais de gente insegura.

A população canina que vive em apartamentos nem sempre é tão carente de cordialidade. Com eles posso falar e recebo um abano carinhoso da cauda (se o dono não o puxar pela trela para não se meter com estranhos).

Por este meio tenho conseguido até mesmo trocar umas palavras com alguns dos que passeiam todos os dias os cães. São adolescentes ou contratados para o serviço doméstico. Triste realidade, os mais novos ou mais pobres são os que não recusam uma palavrinha simpática. Alguns revelam até prazer no convívio inovador, precisam também dos gestos de fraternidade que a antiga literatura refere.

Fico admirada com os benefícios conquistados pelos cães de apartamentos. Muito mais do que é oferecido às crianças ou idosos da família. Passeiam todos os dias, é verdade que presos à vontade do seu «dono» por uma trela, têm casa, comida e assistência à saúde. Aparentemente sem a contrapartida na prestação de serviços domésticos não remunerados introduzem no coletivo familiar a demonstração do afeto banido da formação humana deste mundo tão avançado em conhecimentos científicos e tecnologias modernas. Que saudade de quando a cordialidade não ofendia nem despertava preconceitos de elite.

 



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